
Debater o tema proposto patrimônio, memória e identidade: na ótica da salvaguarda do tambor de crioula do Maranhão e da política nacional de desenvolvimento sustentável dos Povos e comunidades tradicionais de matriz africana configura um momento muito oportuno não só pelo mês da consciência negra, mas principalmente pela proximidade do período de revalidação do título de patrimônio cultural brasileiro outorgado ao Tambor de Crioula do Maranhão. Com o título é institucionalizado o processo de salvaguarda desta expressão que tem como meta a proteção da memória e o fortalecimento da identidade de um povo a partir da promoção e preservação do seu patrimônio cultural de forma garantir a sustentabilidade.
O conceito de cultura, para se debruçar na ideia de patrimônio cultural, é usado geralmente para falar da totalidade dos valores e das práticas humanas. Neste sentido, cultura é tudo que é produzido pelo ser humano.
Por outro lado costuma-se chamar de cultura um tipo de recorte para definir práticas relacionadas artes, entretanto vai muito além disso. O conceito de cultura supera o entendimento de erudição ou produção de arte. Relaciona-se ao modo de vida em sociedade, visões de mundo e a toda ação humana dotada de significado.
A primeira ideia que se tem sobre patrimônio se limita ao produto materializado da história, aos bens tangíveis, ao que foi herdado do passado com valor simbólico de registro social. Mas esse conceito é mais amplo. Nele se inserem experiências e memórias coletivas ou individuais.
Segundo Juliana Santili, “não se pode se desvincular patrimônio material do patrimônio imaterial”.
O patrimônio imaterial não consiste em objetos, mas sim na virtualidade desses objetos: sua concepção, seu plano e o saber sobre eles. Conservar, então o patrimônio imaterial, é, sobretudo conservar objetos já produzidos. Enfim a ideia de patrimônio material esta ligada ao produto e a ideia do patrimônio imaterial está no processo de produção, isto é, nas formas de fazer.
A relação entre patrimônio, memória e identidade está no fato de o patrimônio é a materialidade das lembranças e memórias, sejam individuas ou coletivas que estruturam a identidade através do fortalecimento do sentido de pertencimento. A memória estabelece vínculos entre gerações e eterniza a história na consciência humana.
A construção da identidade está ligada as referencias estabelecidas com a memória registrada e tradição que os indivíduos ou a coletividade estão culturalmente relacionados.
Com o conceito de patrimônio cultural imaterial é estabelecido uma ruptura da visão elitista, monumentalista e sacralizadora de patrimônio cultural. Valoriza a cultura viva enraizada no fazer popular e nos cotidianos da sociedade.
Não é possível compreender os bens culturais sem considerar os valores neles investidos e o que representam. Como foi citado se pode entender a dinâmica do patrimônio imaterial sem o conhecimento da cultura material que lhe dá suporte. Os bens imateriais abrangem todas as formas de saber, fazer e criar.
O patrimônio imaterial é preservado pela tradição. Os conhecimentos tradicionais são produzidos e gerados de forma coletiva, com base na ampla troca e circulação de ideias e informações, transmitidas oralmente de uma geração para outra. Os conhecimentos tradicionais – os saberes – se reportam a uma identidade cultural coletiva e a usos, costumes e tradições coletivamente desenvolvidos, reproduzidos e compartilhados.
Discorrer sobre título do Tambor de Crioula do Maranhão como Patrimônio Cultural Brasileiro e a política de preservação definição é importante lançar mão da definição de CULTURA TRADICIONAL E POPULAR adotada pela Unesco em 1989:
A cultura popular e tradicional é o conjunto de ações que emanam de uma comunidade cultural fundadas na tradição, expressa por um grupo ou por indivíduos e que reconhecidamente respondem por expectativas da comunidade enquanto expressão de sua identidade social e cultural.
O tambor de crioula do Maranhão é uma “forma de expressão de matriz afro-brasileira que envolve dança circular, canto e percussão de tambores. Dela participam as ‘coreiras’, tocadores e cantadores, conduzidos pelo ritmo incessante dos tambores e o influxo das toadas evocadas, culminando na punga (ou umbigada) – movimento coreográfico no qual as dançarinas, num gesto entendido como de saudação e convite, tocam o ventre umas das outras.” E embora se aproxime de outras danças de umbigada existentes na África e no Brasil, somente no Maranhão ela é conhecida com esta denominação.
Esta manifestação da cultura popular maranhense é praticada - originária e predominantemente - por descendentes de escravos africanos pertencentes às classes menos favorecidas dos meios urbanos e rurais, como forma de divertimento ou de pagamento de promessa a São Benedito, santo negro de devoção dessas comunidades no Maranhão, e em todo o Brasil.
Entre as situações que motivam a realização do Tambor de Crioula referimo-nos acima ao pagamento de promessa a São Benedito, mas a celebração pode ocorrer também em louvor a outros santos vinculados ao catolicismo tradicional, bem como a entidades e encantados presentes no universo religioso afro-maranhense. Datas comemorativas santificadas ou profanas são, igualmente, ocasiões propícias para a celebração. Já as apresentações que acontecem durante o carnaval, decorrem mais por demanda do turismo e por incentivo do poder público. O que é preciso distinguir – pois isso pode implicar em diferenças na forma e aspectos da manifestação – é se o Tambor acontece pela vontade e para a fruição de seus praticantes ou, ao contrário, por um contrato - formal ou informal – voltado para apresentações oficiais. Nesta última situação, o grupo deve se propor a seguir as regras inerentes ao evento em questão, e tomar determinadas decisões, como, tipo de roupa a ser usado, o número de brincantes, o tempo de duração da roda, tipo de toada tocada e cantada
Identifica-se atualmente uma tendência à espetacularização dessa forma de expressão, principalmente na capital, São Luís, ocasionada pela demanda turística, por apelo da mídia, e pela perspectiva de uma ‘profissionalização’, como a obtenção das vantagens correspondentes, entre outros fatores. Porém, os elementos ritualísticos e tradicionais vinculados a essa prática ainda se mantêm na grande maioria dos casos, e se fazem presentes com força e destaque nos grupos fixos, nas celebrações espontâneas, tanto no Tambor realizado em louvor a alguma entidade espiritual, quanto naquele que se realiza em pagamento de promessas, ou mesmo por puro entretenimento. Além disso, nos diferentes elementos que estruturam essa manifestação – seja em seus aspectos coreográficos, poético-musicais ou nos fazeres e saberes que lhe são próprios, os elementos rituais se mantêm presentes, conferindo-lhe significado e conteúdo para além da ‘forma’ com que se apresentam, e dos aspectos sensorialmente perceptíveis.
Além dos aspectos materiais e simbólicos acima referidos, esta celebração e este saber-fazer expressam igualmente a resistência cultural dos negros e de seus descendentes no Maranhão. Trata-se de um referencial de extrema importância como afirmação identitária dos grupos que o produzem, além de uma oportunidade de exercitar seus vínculos sociais e comunitários. As festividades agrupam pessoas de mesma origem étnica, geográfica e social, que compartilham um passado comum.
O registro com patrimônio cultural brasileiro foi concedido ao Tambor de Crioula em 2007 e segundo a Política Nacional do Patrimônio Imaterial instituída pelo Decreto federal 3.551/2000 obriga o Estado brasileiro nos seus diversos níveis ao investimento de políticas públicas para salvaguarda dessa expressão cultural.
O Plano de Salvaguarda é o instrumento que norteia e orienta a atuação do Comitê gestor na condução do processo de salvaguarda, bem como promove a reflexão e acerca das ações voltadas para o Tambor de Crioula realizado pelas instâncias públicas locais. O Plano é o resultado do diagnóstico levantado pela auditiva da base social do tambor entre 2008 e 2009.
O plano é divido em 4 eixos:
• Preservação dos modos de fazer o tambor de crioula
• Capacitação de quem faz o tambor de crioula
• Socialização e valorização dos conhecimentos associados ao tambor de crioula
• Registro material
O Comitê Gestor é um colegiado formado por entes públicos, representação de classe, e representantes de áreas de ocorrência do Tambor na região metropolitana da Grande são Luis.
Alguns desafios:
Compreensão e entendimento da política da salvaguarda pelos detentores
Monetarização da produção cultural imposta pela indústria do turismo.
A política de salvaguarda do tambor de crioula reafirma a necessidade de valorização do patrimônio imaterial, da preservação da memória e da elevação da autoestima de uma considerável parcela da sociedade a partir do fortalecimento da identidade cultural, concorrendo assim para garantia de direitos e combate ao racismo e todas as formas de violência correlata.
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