terça-feira, 16 de dezembro de 2008

Secularidade e Tambor de Mina - Prof. Dr.Sergio Ferretti


Comunicação apresentada na Mesa Redonda A secularidade e o Tambor de Mina no I Seminário Fala Vodunsi no Hotel Praia Mar em S.Luís a 29/11/2008.


No que entendo a palavra secularização está relacionado com o século, ou o mundo. Na Igreja Católica há uma diferença entre os padres seculares, que vivem em Paróquias, sujeitos aos Bispos e os padres regulares, que pertencem a congregações religiosas como Franciscanos, Dominicanos, Beneditinos e outros que, vivem em conventos e fora do mundo secular. Quando um padre regular deixa a congregação e vai para o clero secular se diz que ele foi secularizado, teve dispensa dos votos monásticos e passa a estar mais em contacto com o mundo exterior ou ao século do que com o convento. Assim secularização significa transferência de uma pessoa ou um bem clerical a uma instituição civil. Do mesmo modo se fala em escola leiga ou secular em oposição à escola religiosa
Não sei se a expressão secularidade e tambor de mina, está bem empregada. Creio que o interesse do debate aqui está mais em função da atualização do tambor de mina e não tanto uma secularidade ou secularização do tambor de mina. Parece-me que o interesse é saber como os terreiros de tambor de mina devem se apresentar atualmente diante do mundo em que estamos inseridos. Trata-se de fato da atualização ou do “aggiornamento” como se diz em italiano. É o que podemos entender lendo o release deste encontro que procura entender a situação do tambor de mina no Maranhão hoje. Não vamos nos referir aqui aos aspectos litúrgicos ou aos segredos do culto mas a alguns aspectos da atuação dos terreiros frente a sociedade atual ou sobre a função social e cultural das casas de culto afro nos dias de hoje. Vou apresentar algumas idéias sobre estes assuntos mas é claro que são apenas idéias e que evidentemente são discutíveis.

A meu ver acho que deve haver uma inspiração no modelo tradicional do Tambor de Mina como foi instituído pelos africanos no século XIX, como por exemplo, na Casa das Minas e na Casa de Nagô e em algumas outras. Mas evidentemente este modelo tem que ser atualizado para estar mais de acordo com os tempos atuais. Não estamos mais no século XIX quando a religião foi implantada aqui. Mas parece importante a preservação dos mitos e dos rituais que foram implantados pelos africanos no Maranhão Como deve ser esta atualização? Quais os seus aspectos principais?
No passado o Tambor de Mina era praticado quase que exclusivamente por mulheres, como ainda acontece em algumas casas. Os homens ocupavam cargos específicos, quase que só como tocadores de instrumentos e sacrificadores de animais. Hoje evidentemente esta situação se modificou e a religião interessa tanto a homens quanto a mulheres, embora constatemos de modo geral que a presença feminina é mais expressiva até hoje no Maranhão.
Segredos do culto. Toda religião tem seus rituais que são privados e outros que são públicos. Mas no Tambor de Mina tradicional havia muito segredo e mistério, evitava-se inclusive falar o nome das entidades, contar suas estórias e mitos, seus cânticos e orações em público. Creio que nos terreiros atuais esta prática tende a se reduzir embora continue a haver rituais privados e locais de acesso restrito aos iniciados. Isto é importante inclusive para a maior auto-valorização da religião. Mas o excesso de segredos e mistérios envolvendo o culto é prejudicial à atualização da religião nos dias de hoje, quando tudo é divulgado por escrito ou pela internet.
Oralidade. Sabemos que no passado os escravos eram analfabetos e a tradição religiosa afro-brasileira foi transmitida, sobretudo oralmente. As religiões de origens africanas não são religiões da escrita, do livro, da pregação, da palavra proferida em público, da oratória, do texto escrito e da revelação acabada e que a oralidade ainda é muito importante nestas religiões. Na sociedade atual, entretanto, em que a maioria das pessoas é alfabetizada, é claro que muitos conhecimentos religiosos são transmitidos e conservados por escrito também nas religiões afro-brasileiras. Este é um fator que provoca transformações estruturais nestas religiões, pois nos terreiros também a maioria dos filhos-de-santo é alfabetizada e tende a ter nível de instrução cada vez mais elevado. Já há muitos pais e filhos-de-santo que são graduados e mesmo pós-graduados nas universidades e isto parece ser é uma tendência a se ampliar. Assim cada vez mais os conhecimentos religiosos afro-brasileiros tenderão a ser transmitidos também por escritos embora os conhecimentos orais continuem sendo valorizados.
Autonomia e isolamento das casas. Em geral os pais e mães-de-santo, como os pastores evangélicos costumam ser muito ciosos por sua autonomia e as federações de culto afro não costumam ter muito prestígio, a não ser as Federações de Umbanda e assim mesmo até certo ponto. O problema maior é que cada casa se julga mais certa, mais correta e melhor do que as demais. Isto é uma característica de quase todas as religiões e parece que também é encontrada entre as igrejas evangélicas A meu ver este é um dos graves problemas para as religiões afro-brasileiras nos dias atuais, que precisa ser superado para que as religiões de origens africanas tenham maior peso e maior respeitabilidade na sociedade atual.
A partir do exemplo dos evangélicos e de outros grupos religiosos, creio que os participantes das religiões afro-brasileiras precisam se organizar, para eleger seus representantes no legislativo e conseguir melhor defesa de seus direitos. Estes representantes precisam ser bem escolhidos e exercer uma liderança positiva. Temos alguns exemplos de representantes das religiões afro eleitos no Maranhão mas ainda são poucos os representantes políticos dos cultos afro-brasileiros.
Valorização da identidade negra. No passado havia é claro resistência cultural e a preservação da identidade religiosa nos grupos de culto afro, mas praticamente não havia consciência desta valorização. Hoje é necessário que esta consciência seja assumida e divulgada. Muitos que hoje são evangélicos saíram das religiões afro-brasileiras e parece que alguns encontram maior valorização da auto-estima como negros nestas religiões que são recentemente importadas, mais divulgadas pela mídia e que não preservam valores de nossa cultura relacionados como a música, a dança, o artesanato, a culinária e a cultura popular em geral.
As religiões afro-brasileiras precisam contribuir para estimular a auto-estima entre seus participantes que devem sentir orgulho em participar destas tradições que foram herdadas dos antepassados e que são conservadas como forma de resistência cultural. Durante muito tempo estas religiões foram estigmatizadas e perseguidas pelas autoridades e pela mídia e ainda hoje continuam em grande parte mal conhecidas. É necessário que os seus participantes se sintam valorizados enquanto pessoas, como cidadãos e como guardiões de uma tradição ancestral que constitui um fator importante de definição da identidade nacional.
Sabemos que nas religiões afro todos são bem aceitos, que elas não são religiões exclusivistas, de “quem não está conosco está contra nós”, como a maioria das religiões. São tolerantes com outras religiões, aceitam as outras como diferentes, mas não como totalmente contraditórias. Seus fiéis podem freqüentar o catolicismo, o espiritismo e às vezes até religiões evangélicas, o que é mais raro, como tem sido constatado, mas não impossível como muitos pensam. A dupla pertença é comum nas religiões afro, especialmente com o catolicismo. Esta característica de tolerância frente aos outros parece-nos uma das características mais importantes das religiões afro-brasileiras e a nosso ver deve ser incentivada.
As religiões afro-brasileiras são religiões de alegria, em que se reza cantando e dançando, como os judeus faziam no templo do Rei Salomão. Na Igreja Católica na Idade Média e em parte até o séc. XVIII no Brasil, também se faziam festas e eram realizadas danças nas igrejas. Diferentemente de muitas religiões em que se reza contritamente, com as mãos postas, nas religiões afro-brasileiras se reza cantando e dançando, por isso nelas sempre se organizam muitas festas com tambores, cabaças e outros instrumentos, ou com palmas. Constata-se que atualmente também se costuma cantar e dançar em muitos cultos católicos ou evangélicos, o que as religiões afro sempre fizeram. As danças nas religiões afro-brasileiras expressam gestos que falam sobre elementos dos mitos presentes nos cânticos e na religião, muitos são cantados em língua esotérica. A performance dos rituais é bonita, alegre ou sóbria, conforme peculiaridades de cada cerimônia. Esta característica é também importante e deve ser acentuada.
Na preparação dos rituais afro-brasileiros há uma série de ensinamentos que são aprendidos como tocar, cantar, dançar, bordar, costurar, desenhar, cozinhar, preparar instrumentos, etc. Os terreiros funcionam como escolas populares onde se ensinam e se aprendem estas e muitas outras atividades úteis na vida cotidiana, que servem também para ganhar a vida, embora não se pense nem se fale em teologia da prosperidade. Estas atividades em geral se relacionam com profissões consideradas subalternas em nossa sociedade, mas transmitem uma arte, uma técnica e uma profissão. Mas a religião não é só festa, há diversos ritos que são realizados discretamente. Como se considera que festas religiosas fazem parte da cultura popular, as religiões afro-brasileiras muitas vezes são pejorativamente encaradas como mero folclore, embora seus participantes saibam distinguir claramente religião, como algo sério, de folclore que é, sobretudo, recreativo. Pode-se exemplificar no Maranhão com diferenças entre os rituais religiosos do tambor de mina e a dança folclórica do tambor de crioula. Sabemos que muitas destas manifestações da cultura popular estão também presentes nos terreiros, incluídas entre as atividades culturais das comunidades de culto, como entre outros, festas de tambor de crioula, de bumba-meu-boi, apresentação de autos do pastor, festa do Divino, queimação das palinhas do presépio, etc. Parece importante que estas atividades continuem a ser realizadas nos terreiros como manifestações culturais importantes da região em que estamos inseridos e tais atividades estão presentes nas casas de culto.
Em decorrência do processo de globalização e por outros fatores, um dos temas que atualmente começa a ser debatido pelas ciências sociais é o turismo. Na antropologia e nas ciências sociais parece que vigorava até pouco tempo uma certa aversão ao fenômeno do turismo, como algo oposto ao trabalho de campo da pesquisa científica e de fato há grandes diferenças entre a curiosidade do turista e a do pesquisador, embora enquanto viajantes a procura do outro, do diferente, acabam tendo algo em comum. O turismo religioso tem sido analisado principalmente do ponto de vista das romarias a locais sacros, relacionados no Brasil, sobretudo com o catolicismo popular. Existe, entretanto, também um turismo religioso incipiente relacionado com as religiões afro-brasileiras, que ainda tem sido pouco estudado.
Como em outras regiões atualmente no Maranhão o turismo é uma realidade em expansão que contem elementos negativos e positivos. Depois de tombada pela UNESCO como patrimônio da Humanidade, a cidade de São Luís tem sido procurada por interessados nas belezas de seu acervo arquitetônico, do folclore e do turismo cultural. Neste aspecto os terreiros de culto afro constituem uma atração, como ocorre em outras capitais antigas do país, que receberam influência africana. Secretarias de Turismo, o SEBRAE e outros órgãos têm realizado estudos em alguns terreiros para servir de orientação a turistas que buscam informações sobre os mesmos. Entre as conseqüências do turismo para os terreiros, considera-se que pode ajudar a combater preconceitos, divulgar e tornar mais conhecida a religiosidade popular, desenvolver laços temporários de amizade e talvez mesmo trazer algumas ajudas em dinheiro.
Não estamos de acordo que hajam rituais religiosos em que os turistas paguem 40 ou 50 Euros para assistir, como temos notícias que vem ocorrendo em algumas casas de candomblé para turistas da Bahia. Parece preferível que haja, como em Cuba, um balé folclórico, que empregue tocadores e filhos-de-santo de terreiros e que se apresentem como artistas em palcos de hotéis e teatros. Temos dúvidas se o turismo pode ou não contribuir para desenvolver o interesse dos mais jovens em preservar a tradição dos mais velhos, mas vê-se que o turismo, sobretudo o turismo cultural constitui elemento novo que entra em cena na contemporaneidade, não pode ser deixado de lado e necessita ser estudado em relação às religiões afro-brasileiras. Há pessoas que visitam o Maranhão e o Nordeste e estão interessados em conhecer a cultura e as religiões afro-brasileiras e é preciso prever a presença dessas pessoas de forma a que elas visitem, mas não perturbem os rituais das casas de culto afro. É preciso que os pais e filhos-de-santo estejam preparados para refletir sobre influências positivas e negativas que podem ser provocadas pelo turismo nos terreiros.
Atualmente as religiões afro-brasileiras precisam estimular e participar na capacitação profissional de seus membros para que possam assumir posições sociais mais dignas e melhor remuneradas. Precisam igualmente colaborar no desenvolvimento educacional e na preservação da saúde dos participantes, bem como envolver-se em atividades de educação, saúde e capacitação do bairro e da comunidade em que estão inseridos para que haja um retorno social do terreiro à comunidade. Os terreiros sempre desenvolveram atividades relacionadas com a saúde e a educação, mas estas atividades hoje necessitam ser mais formalizadas, difundindo-se hábitos de higiene bem como a valorização das medicinas alternativas.
A ecologia atualmente é um tema que exige o envolvimento de todos em vista à salvaguarda do planeta que preocupa a todos. As divindades das religiões de origens africanas estão relacionadas e protetoras das forças da natureza. Assim é um dever de todo o povo-de-santo respeitar e proteger a natureza. Os rituais realizados em praias, rios, lagos, cachoeiras e matas devem se realizados com respeito à natureza, evitando-se formas desnecessárias de poluição com o abandono de resíduos de velas e de objetos rituais e de consumo.
Um problema que as religiões afro-brasileiras atualmente enfrentam em todo país é o preconceito e as perseguições das igrejas neopentecostais, através da mídia protestante e por outros meios. A partir dos anos de 1970 e 1980 as religiões afro-brasileiras passaram a ser menos perseguidas e começaram a ser mais respeitadas. Justamente desde este período as igrejas evangélicas passaram a desrespeitar a liberdade religiosa e a difamar as religiões afro. É preciso que os terreiros conheçam seus direitos e saibam se defender quando atacados. Procurem amigos, advogados e a mídia para se defender destes ataques.
Em suma constatamos que no presente há inúmeras atividades e funções que se apresentam as religiões afro-brasileiras e elas precisam se adaptar melhor ao mundo atual. É preciso por isso que seus adeptos e seguidores se afirmem como participantes das religiões de origens africanas e assumam esta participação diante dos outros, das autoridades, do recenseamento para que sua religião tenha maior visibilidade na sociedade e se beneficie desta visibilidade.

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